Vamos problematizar? | Nobuhiro Watsuki, pornografia infantil e o que a indústria dos animes tem a ver com isso

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Esse texto foi originalmente postado em 21 de novembro de 2017
Nesta terça-feira (21), Nobuhiro Watsuki, autor de Rurouni Kenshin (mais conhecido como Samurai X no Brasil), um grande clássico dos animes, foi preso pela Polícia Metropolitana de Tóquio por posse de pornografia infantil. De acordo com as autoridades, Watsuki possuía inúmeros DVDs com imagens de garotas pré-adolescentes guardados em um escritório de Tóquio. Durante o depoimento, Watsuki alegou que ele “gostava de garotas que estavam no final do primário até mais ou menos o segundo ano do ginásio”. Os vídeos pornográficos estavam com ele desde julho de 2015.
Essa notícia, que chocou inúmeros fãs ao redor do mundo, é apenas o reflexo de um problema muito maior que existe no Japão. Embora o país tenha proibido a produção e distribuição de imagens que contenham abuso sexual de crianças em 1999, foi apenas em junho de 2014 que a posse de tais imagens passou a ser criminalizada. Na época, as pessoas receberam o prazo de um ano para se livrar de qualquer material do tipo que pudessem ter. O problema dessa lei, que inclusive gerou muitas críticas por parte da comunidade internacional, é que ela exclui a pornografia infantil retratada em quadrinhos, animações e jogos. A desculpa que muitos dão é que “ficção e realidade são coisas distintas”, “não há crianças reais sendo abusadas na produção de tais materiais” e que proibi-los seria um “ataque à liberdade de expressão”.
Bem, o fato é que os casos de pornografia infantil atingiram um recorde na primeira metade de 2017, contabilizando 1.142 denúncias em comparação aos 123 casos denunciados no mesmo período em 2016, de acordo com a Agência Nacional da Polícia. Mais de 90% das vítimas eram pré-adolescentes ou adolescentes e quase todas eram meninas. Também em fevereiro deste ano, a polícia japonesa prendeu seis homens acusados de pornografia infantil que incluía o abuso de pelo menos 168 meninos segundo relatos da mídia local. As vítimas tinham entre 4 e 13 anos e mais de 100.000 arquivos de pornografia infantil foram encontrados nos computadores dos criminosos, que possuíam entre 20 e 66 anos de idade. Alguns trabalhavam como voluntários em acampamentos para crianças do primário e do ginásio e outros eram professores do primário.
Em outras palavras, mesmo com a proibição da produção e distribuição de pornografia infantil em 1999 e a criminalização da posse em 2014, o número de casos não diminuiu – muito pelo contrário, todo ano ele cresce mais e tem sido assim pelos últimos 20 anos. Por quê? Um dos motivos é a fragilidade da lei, que pode ser burlada de algumas maneiras. Por exemplo, a lei não cobre questões em que meninas são retratadas de modos extremamente sexuais, que vão desde fotos de grupos da música pop formados apenas por garotas onde as integrantes posam de lingerie e biquíni até ilustrações de rostos de pré-adolescentes sobre os corpos sensuais de mulheres adultas (isso também é um reflexo da desimportância que a sociedade japonesa dá à objetificação das mulheres de todas as idades). Não é de se surpreender que a aprovação da lei tenha recebido apenas uma rápida menção nos noticiários noturnos do país. Outro motivo é que a punição para quem comete esse tipo de crime é incrivelmente branda: como no caso de Watsuki, a simples posse de pornografia infantil acarreta somente até 1 ano de prisão e uma multa de aproximadamente 29 mil reais.
Nesse sentido, é preciso questionarmos qual é o papel da indústria dos animes e mangás no que diz respeito à pornografia infantil. Ainda que ninguém esteja sendo abusado durante a produção de tais materiais, a retratação de crianças de modo sexual e explícito pode naturalizar, facilitar e até mesmo levar a um aumento do risco de abuso sexual desses indivíduos. Embora pesquisas sobre o tema tenham sido inconclusivas até o momento, existe uma preocupação real da sociedade japonesa (sobretudo por parte das mulheres) quanto à pornografia extrema, que geralmente degrada o gênero feminino, e à sexualização dos jovens.
Gakusen Toshi Asterisk. Ela tem 13 anos.
A pornografia infantil é um negócio bilionário e o Japão era o segundo maior consumidor do mundo já em 2008 (atrás apenas dos Estados Unidos). É extremamente fácil encontrar material que sexualize crianças e adolescentes na indústria dos animes e mangás. Os termos “lolicon” (para meninas) e “shotacon” (para meninos), utilizados para definir quando um adulto sente atração sexual por uma criança, são comuns por aí, tanto em fóruns de discussão como em blogs e sites para ler mangás (principalmente doujins). Não é assustador que um país onde a pornografia infantil é um problema tão sério não se questione quanto à produção e à distribuição desse tipo de material? Alguns autores dão desculpas esfarrapadas como “a personagem só tem aparência de criança, mas na verdade é adulta” ou “é só o traço da pessoa que parece infantil”, mas nada disso muda o fato de que há milhares de pessoas mundo afora consumindo um material cujo foco está no corpo sexualizado de uma criança e, fictícia ou não, isso é perturbador.
Strike the Blood. Ela tem 26 anos…?
Longe de mim ser fiscal do pornô alheio, mas vamos concordar que alguma coisa está muito errada quando os casos de pornografia infantil não param de aumentar mesmo após a criminalização da posse em 2014. Não se trata de uma questão “cultural” no sentido de que a pornografia infantil é aceita pela sociedade japonesa – se fosse não seria crime há quase 20 anos –, mas a obsessão dos japoneses por colegiais, por exemplo, somada à fragilidade da lei e da punição por parte do Estado, assim como a infeliz existência de um machismo enraizado naquela sociedade, contribuem bastante para a formação do cenário que vemos hoje. Está na hora de rever os seus conceitos, Japão.

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