Vamos problematizar? | Desmascarando quatro “príncipes” do mundo dos animes

 
Esse texto foi originalmente publicado em 1 de maio de 2017
 
 

Essa postagem é inspirada no texto “4 Heróis Românticos que Eu Não Queria na Minha Vida nem Pintados de Ouro” do blog Nó de Oito, que pode ser conferido clicando aqui. Recomendo que leiam o texto que a Lara escreveu, pois ela sintetiza muito bem a razão pela qual é necessário que repensemos a nossa visão do que é “romântico” (ou que a mídia tenta nos passar).

Várias vezes acontece de toparmos com personagens por aí que, na realidade, seriam bem assustadores (como é o caso de stalkers, parceiros abusivos ou até mesmo simplesmente machistas ao extremo) e impossíveis de se manter um relacionamento saudável ao lado deles caso não haja algum tipo de mudança. Apesar disso, as histórias tentam retratar o comportamento problemático desses caras como algo “romântico”, “bonito” e afins, fazendo com que tenhamos uma visão distorcida do que realmente seria um gesto de amor.

Pensando nisso, eu e a Gab decidimos fazer uma outra versão dessa postagem, agora com protagonistas de animes. Os personagens escolhidos foram: Alibaba (Magi), Kou (Ao Haru Ride), Kousei (Shigatsu wa Kimi no Uso) e Shirou (franquia de Fate – sobretudo na rota FATE). Eu vou falar do Alibaba e do Shirou, enquanto a Gab falará dos outros dois.

ALIBABA (MAGI: THE LABYRINTH OF MAGIC)

171933Primeiramente, sobre as histórias: Magi: The Labyrinth of Magic é um shounen de aventura e fantasia baseado no mangá de mesmo nome, escrito por Ohtaka Shinobu, que gira em torno de quatro personagens principais: AlibabaAladdinMorgiana e Hakuryuu. Alibaba e Hakuryuu são príncipes de nações diferentes – Alibaba do falecido reino de Balbadd e Hakuryuu do todo poderoso império e potência militar de Kou -, com backgrounds completamente diferentes, o que faz com que eles não sejam nem um pouco similares em termos de personalidade ou experiências de vida; Morgiana é uma escrava, assim como todos os outros de sua linhagem (os Fanalis); e, por último, Aladdin – um Magi, que é o nome dado a classe mais poderosa de magos. Cada um deles possui conflitos próprios para resolver, sejam eles provar que são dignos do trono, encontrar um caminho pelo qual devem seguir ou descobrir quem realmente são de verdade. A história segue a jornada desses quatro jovens em busca de suas respostas.

Meu problema com o Alibaba começa justamente depois que a Morgiana é introduzida na história, pois ela vira interesse romântico tanto dele quanto do Hakuryuu. Entretanto, Alibaba não parece se importar muito com quem ele vai ficar (além de ser visto com outras mulheres ao longo dos episódios), enquanto Hakuryuu é o contrário – faz questão de declarar seus sentimentos à Morgiana (ainda que eu repudie o beijo roubado que ele deu nela). Apesar disso, *spoiler*, o mangá já confirmou que AliMor é canon.

Um parágrafo é muito pouco pra expressar o tamanho da raiva que eu senti com esse casal virando canon. Primeiro porque a Morgiana, uma das protagonistas da história, forte pra caramba e que poderia se tornar o que quisesse, acaba sendo reduzida ao papel de “esposa do Alibaba” (inclusive ela não vai participar da batalha final de Magi, enquanto os outros três protagonistas vão, junto de outro Magi).

 
Certamente não seria útil em uma batalha… Tão fraquinha, né?
 

Segundo porque o Alibaba é extremamente machista. Em um capítulo recente, por exemplo, AliMor tem uma discussão e ele afirma que vai lutar, por isso a Morgiana deve simplesmente cozinhar alguma coisa pra ele e esperar em casa até que ele volte.

ATENÇÃO: A MORGIANA, UMA LUTADORA NATA, DEVE FICAR EM CASA ESPERANDO O QUERIDO MARIDO VOLTAR DA BATALHA FINAL.

 
Mas pelo menos a Morgiana não fica calada, né…
 

De qualquer forma, é assim que o Alibaba a vê: uma empregada. Ainda que a Morgiana acabe ficando em casa por um motivo diferente (que não será citado aqui por se tratar de um spoiler gigantesco), a visão do Alibaba não muda.

Outro problema da relação dos dois a meu ver é que a Morgiana parece muito confundir admiração com amor. Alibaba foi responsável por libertá-la da escravidão e, desde aquele momento, Morgiana possui uma profunda admiração e respeito por ele. Sem ter qualquer outro tipo de experiência amorosa, além de ser jovem, é possível que a Morgiana esteja confundindo seus sentimentos. Enquanto o Alibaba, por outro lado, parece ficar com ela só porque ela gosta dele. Enfim, não importa o quanto eu reclame, o fato é que AliMor é canon. Ainda assim, eu não gostaria de me casar com um cara que me enxerga como uma mera empregada dele.

Essa redução de personagens femininas a papéis ridículos, na verdade, é um problema recorrente em Magi. Além do caso da Morgiana, também poderíamos citar momentos em que o corpo feminino é utilizado para fanservice ou motivo de piada, assim como o sumiço de personagens femininas em momentos importantes da obra. Eu amo, amo Magi do fundo do meu coração; também é fato que a Shinobu criou personagens femininas fortes, independentes e maravilhosas. Entretanto, a mangaká pisa muito na bola quando se diz respeito ao desenvolvimento dessas mulheres, o que é uma pena. Acredito que muito disso aconteça justamente por causa da demografia, mas gostaria que essas coisas não se repetissem caso ela venha a publicar outro mangá futuramente.

SHIROU (FATE/STAY NIGHT)

67333Fate/Stay Night e Fate/Stay Night: Unlimited Blade Works são adaptações de anime baseadas em rotas diferentes de uma Visual Novel – uma da Saber e outra da Rin. A história retrata o período da guerra do Santo Graal, onde sete mestres e sete servos têm que lutar uns contra os outros em um jogo de sobrevivência para conquistar o Graal, desse modo podendo realizar seus maiores desejos.

Como alguém que assistiu Fate/Zero antes do resto da franquia, a minha decepção com Stay Night foi enorme – pelo menos em termos de protagonista. O Shirou é tão, mas tão ruim, que inclusive tem autoria das frases “as pessoas morrem quando são mortas” e “só porque você está correto não significa que está certo”. Para piorar a situação, é um cara que não consegue encarar a realidade, sempre querendo viver em um mundo ideal, quando ele não possui a inteligência, força ou poder para realizar seus ideais. Aí, para fechar com chave de ouro, além de burro, irracional e bundão, o cara ainda é extremamente machista também.

Um exemplo: a serva dele, Saber, é uma representação do Rei Arthur (que, nessa obra, é uma mulher) e que foi brilhantemente escrita por Gen Urobuchi em Fate/Zero. Saber, portanto, é originalmente um “Rei” e alguém completamente capaz de lutar (muito mais forte e melhor que o Shirou, diga-se de passagem). No entanto, Shirou tenta impedi-la de lutar em diversos momentos porque “isso não combina com ela”, afinal, “não é coisa de garota”, ou seja, ele simplesmente não aceita a ideia de uma mulher lutar! Minha nossa senhora, como esse personagem me faz passar raiva! Shirou reduz a Saber, serva pertencente à classe mais poderosa de todas, à visão (machista) dele de como uma mulher deve ser – coisa que ele certamente não teria feito se a Saber tivesse sido retratada como um homem.

Ainda que o Shirou seja infinitamente pior e mais irritante do que o Alibaba, os dois possuem visões (machistas) e comportamentos bastante similares – portanto, definitivamente não servem para namorar (a menos que mudanças drásticas ocorram).

KOU (AO HARU RIDE)

Ao Haru Ride é um mangá criado por Io Sakisawa, que virou anime em 2014. A história é sobre Futaba Yoshioka, uma garota que passou o fundamental sem amigas porque muitos garotos demonstravam interesse por ela. Ela não correspondia o interesse dos meninos, exceto o de Tanaka Kou, por quem era apaixonada. Entretanto, antes que pudesse confessar seus sentimentos, ele se mudou. No colegial, Yoshioka muda de personalidade para tentar ter mais amigas e não chamar atenção dos garotos. Entretanto, o seu novo status quo muda quando Kou volta a estudar na mesma escola que ela e passa a questioná-la sobre suas decisões, mexendo com sentimentos do passado.

Eu pessoalmente não gosto de falar mal de shoujos, pois é uma demografia que sofre muito preconceito, principalmente por trabalhar com temas que socialmente estão dentro dos interesses dos estereótipos do gênero feminino, que, normalmente, são vistos como negativos e inferiores. Além disso, é um tipo de quadrinho produzido majoritariamente por mulheres e eu sempre prefiro olhar o lado positivo das produções femininas. No entanto, eu não posso fechar os meus olhos, pois shoujos reproduzem ideias e comportamentos extremamente problemáticos e os “príncipes” são só homens (bem machistas). E esse é o caso de Ao Haru Ride.

O Kou é um tipo de bad boy gourmet. Ele tem um passado triste que é usado para justificar a sua atitude agressiva e indiferente em relação às pessoas. Mas para mim, o pior de Ao Haru Ride é o mito de que você é capaz de mudar o boy que te maltrata. E é bem isso que acontece. O Kou abre o seu coração e torna-se uma pessoa melhor. Esse mito é muito perigoso e constantemente romantizado em obras da ficção. Isso é um exemplo bastante negativo para mulheres que vivem relacionamentos abusivos, assim como uma romantização que funciona como uma forma de manutenção do poder do homem sobre a mulher pelo mito do amor.

A ideia que o mangá quer passar é que isso é uma fachada para afastar as pessoas, principalmente o seu interesse amoroso, a Yoshioka. Entretanto, o passado triste não justifica o comportamento dele em relação a protagonista. O tempo todo ele a diminui por suas ações, suas escolhas e sua aparência. O pior é que esse comportamento é visto como gentileza, pois ele só quer “ajudá-la a ter uma vida melhor ou ter amigas de verdade”. Bom, não é diminuindo a pessoa que você faz isso, existem outras formas. Isso é apenas um homem dizendo como uma mulher deve (ou não) viver. E isso chega ao extremo na cena em que ele simula que vai estuprar a Yoshioka, no intuito de preveni-la a não andar sozinha por aí (ou até com ele, afinal, ele é homem), pois pode ser estuprada.

KOUSEI (SHIGATSU WA KIMI NO USO)

Shigatsu wa Kimi no Uso é um exemplo de anime que usa a trope da Manic Dixie Dream Girl (MPDG). O termo foi criado por Nathan Rabin na sua crítica ao filme Tudo Acontece em Elizabethtown e é utilizado para descrever uma personagem feminina catalisadora do desenvolvimento emocional do personagem principal masculino. Normalmente, a MPDG é excêntrica, diferente, afirmativa, aquele estereótipo machista da menina que “vale a pena”. Ela possuí como meta de vida salvar o protagonista inseguro, triste e deprimido, devolvendo a este o valor e a vontade de viver. Majoritariamente, a sua função gira em torno do desenvolvimento do protagonista, fazendo-o superar traumas e integrar-se à sociedade, mas deixando o próprio desenvolvimento de lado, acabando por ser caracterizada pela espontaneidade, forma de falar e de vestir, comportamento, e não pela sua trajetória como personagem. A MPDG é um evento na vida do protagonista do que um personagem em si.

O anime em questão conta a história de Kousei Arima, um pianista prodígio que, após a morte da sua mãe, perde a capacidade de ouvir o som do piano e entra em um processo de depressão, e como Kaori Miyazono, uma violinista de espírito livre vai ajudá-lo a voltar ao mundo da música e ter uma perspectiva mais solar em relação a vida.

A partir dessa sinopse fica claro que Kaori é uma MPDG. Primeiro, ela é apresentada de maneira
idealizada, com toda a sua forma de dançar e tocar música, seu espírito de liberdade e sua aparência diferenciada que a destaca das outras. Além disso, toda a trama envolve a tentativa dela de mudar o Arima e fazê-lo voltar a tocar, inclusive, no final do anime/mangá, ela revela que esse havia sido o propósito de sua vida ao se apaixonar por ele, levando-a a mudar sua aparência para tornar-se mais “interessante”. Essa transformação não é mostrada na história, só é contada pela própria Kaori, pois o que interessa é o crescimento do Arima.

O problema de Shigatsu wa Kimi no Uso e do estereótipo da Manic Pixie é a redução do papel da mulher. Ela é representada somente através dos interesses e das necessidades masculinas, reproduzindo a ideia de um papel de gênero. Kaori era tudo que o Arima precisava. Além disso, é uma forma de idealização romântica perniciosa já que a mulher aparece como essa figura idealizada em função ao homem, que no caso de Shigatsu wa Kimi no Uso, isto é ainda pior pois a Kaori literalmente muda a si mesma para se aproximar e salvar o protagonista.

Obviamente, o Kousei Arima não é mau caráter ou uma pessoa ruim, pelo contrário, porém, ao idealizar uma mulher e basear todo o seu protagonismo negligenciando a vida de outra pessoa, o personagem não pode ser visto como um príncipe romântico em  uma história que ainda reproduz a manutenção dos estereótipos de gênero.

3 comentários em “Vamos problematizar? | Desmascarando quatro “príncipes” do mundo dos animes

  1. Sabe entendo e respeito sua opinião, eu mesmo vou dizer a verdade q eu n vi o terceiro anime citado (o do bad boy), gosto dms do Shigatsu pois junto com Assassination Classroom foram os poucos animes q me fizeram dropar umas lagrimas, mas vou abordar aqui FATE, e já adianto q eu sou fã do EMIYA. O anime em vários momentos trata a moralidade de um cavaleiro, como é visto na luta entre a Saber e o Lancer, um código não escrito que trata de maneira arcaica o padrão moral de um cavaleiro medieval, esse código essencialmente, dada a realidade no qual foi criado, é machista (na sua visão acredito eu). Logo eu acho que uma das bases da obra (e isso se repete tanto no FATE, UBW, Apocryfa) mais essenciais é esse código e como ele molda os personagens. Tudo isso pra dizer que esse código culminou no esteriótipo de super herói atual (Miranha com MJ, Superman e Louis, e até mesmo no Bat e Mulher Gato onde quem resolve tudo no final é o Batman com preparo) Shirou Emiya quer ser O Super-herói, a própria justiça encarnada. Logo concluo que para q o conceito do personagem se una a definição do que ele quer alcançar, ele obrigatoriamente tem q ter o comportamento de ver a Saber como alguém a ser defendida, não só por ser mulher mas por ser alguém que ele pode salvar em uma situação de perigo. Perdão por tomar muito do seu tempo com esse texto extenso e saiba que admiro muito o seu trabalho de analisar obras por perspectivas que mais ninguém trata. Fique bem.
    -Arthur

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  2. Essas atitudes de MC shoujo só são bonitinhas em histórias fictícias. Se todos os mangás seguissem a realidade, ia ser bem difícil de escrever e acompanhar, mas mesmo assim não tem nada certo nisso. Até mesmo o Usuo de Kaichou, que deixa um pequeno limite entre as ações dele para com a Misaki, continua sendo um stalker e assediador que inclusive já quis controlar o que ela estava vestindo por ciúmes. Haru de Tonari também é um exemplo perfeito desse “príncipe”, chegando a xingar a Mizutani e fazê-la se desculpar, sendo que ele quem tinha magoado ela. Sinceramente, isso tudo só me parece coisa feita pra uma garota carente ler e se deleitar de um príncipe perfeito e inexistente.

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