Este texto foi originalmente publicado em 29 de maio de 2016.
Aqui estamos nós, voltando com as problematizações do blog, e o assunto dessa vez está um pouco relacionado com o da nossa problematização anterior, a falta de representatividade nos animes Yuri. Como não dava para falar tudo em um post só, e esse assunto pode ser um pouco mais abrangente, estamos aqui para falar sobre queerbaiting*.
Pra quem não está familiarizado com o termo, queerbaiting é uma estratégia midiática em que se é mostrado uma tensão romântica/sexual entre personagens do mesmo gênero, com a intenção de aumentar a audiência atraindo o público LGBT que busca representatividade nas obras de ficção, no entanto, um relacionamento de fato entre os personagens não é retratado ou desenvolvido.
Sabendo do que se trata, você já deve ter se deparado em animes com alguma situação em que parecia existir algo além de uma amizade entre dois personagens do mesmo gênero e você ficou se perguntando se estava enxergando demais, ou então notou logo de cara que existia, mas se frustrou ao perceber que a relação não seria desenvolvida. Mas se não se deparou também é comum, já que para o público em geral, maioria não LGBT, o queerbaiting passa despercebido, sendo às vezes intenções muito implícitas reconhecidas principalmente por pessoas que tenham alguma vivência do tipo, ou estão mais familiarizados com relações não heterossexuais e saibam diferenciar de quando se trata apenas de amizade.
Num primeiro momento esse tipo de abordagem pode parecer algo legal, uma tentativa de inclusão dos LGBT, um público que cresce cada vez mais e busca sua representatividade. Os estúdios sabem que uma relação entre pessoas do mesmo gênero chama atenção e atrai olhares, porém ao mesmo tempo não querem se comprometer já que o número de pessoas com um pensamento mais conservador é muito grande e não seria interessante perder esse público, e portanto o queerbaiting seria uma maneira de “agradar a todos”.
Um jeito de perceber se dois personagens estão envolvidos nesse tipo de estratégia é imaginar se um deles fosse de outro gênero, um menino e uma menina, por exemplo. As interações ainda assim seriam vistas só como amizade? Para exemplificar vou trazer duas obras, sendo que uma delas traz um queerbaiting mais explícito e a outra nem tanto. Ambas são do mesmo estúdio, Kyoto Animation, que é famoso por colocar queerbaiting em suas obras.
Hibike! Euphonium
Episódios: 13 e segunda temporada confirmada para outono de 2016
Sinopse (anilist, adaptado): Kumiko Oumae costumava fazer parte do clube de orquestra durante o fundamental e em seu primeiro ano do Ensino Médio, suas colegas de classe decidem se juntar ao clube na nova escola. Entretanto, Kumiko descobre que sua antiga colega, Reina, também está no clube, e hesita ao lembrar-se de um incidente que ocorreu entre ambas no passado.
As cenas de queerbaiting ficam por conta de Kumiko e Reina. Inicialmente Kumiko encontra certa dificuldade em se aproximar de Reina, porém no desenvolver da história, as duas começam a ter pequenas conversas e encontros mais amigáveis. Em uma das cenas, Kumiko encontra Reina enquanto iam para casa, e ainda é nítido o nervosismo de Kumiko, até mesmo encontrando dificuldade para se expressar para Reina, e sendo essa mais direta, antes de se despedir, dá um sorriso, o qual é descrito por Kumiko como misterioso, mas que por alguma razão a deixou feliz. A cena pode ser vista no vídeo abaixo.
A partir daí as interações das duas dão cada vez mais a entender que não é só uma simples aproximação de amizade. Um dos momentos mais marcantes é quando, no episódio 8, Reina convida Kumiko pra caminhar até um local que tem uma vista muito bonita, levando seus instrumentos, e as duas tem um diálogo mais aberto do que das outras vezes. As reações de Kumiko desde o momento que avista Reina vestindo um vestido branco até o final da cena muito dificilmente estariam relacionadas apenas à amizade. Como só achei a cena com legendas em inglês e sei que nem todo mundo entende, vou deixar aqui algumas falas relevantes.
Kumiko: Seus pés não estão doendo?
Reina: Estão sim, mas eu não odeio sentir dor.
Kumiko: Isso é meio que sexy.
Reina: Sendo sincera, eu estava pensando em como queria me aproximar de você.
Kumiko: Hein?
Reina: Você sabe como você tem uma personalidade horrível?
Kumiko: Isso é pra ser um insulto?
Reina: É um elogio.(…)
Kumiko: Então você está realmente me insultando.
Reina: Não. É uma declaração de amor.
Além disso, Reina sugere que Kumiko, que até então a chamava de Kousaka-san, a chame apenas pelo primeiro nome. Reina toca a testa de Kumiko com um dedo e o passa por ela, pelo nariz, indo até os lábios dela, e essa, em pensamento “Eu estava prestes a ser sugada. Naquele momento eu senti como se não me importasse de perder minha vida”. Sério, quem não assistiu o anime, se puder, veja essa cena, a animação é maravilhosa, algo realmente envolvente, e se até esse momento ainda havia dúvida de que se tratava de queerbaiting, não se restou mais, fica nítido que há uma tensão romântica entre as personagens.
Depois dessa conversa, Kumiko e Reina tem várias outras interações em que se pode notar insinuações românticas, mas para não demandar muito tempo e leitura, vou deixar apenas uma imagem de uma conversa das duas, que precedia uma competição para ser a trompetista solo em que Reina participaria. Podem ver o vídeo da cena aqui também.
Reina: Você não vai me abandonar?
Kumiko: Se eu fizer isso, pode me matar. (…) Isso é uma confissão de amor, afinal.

Quando que vocês conversam com amigas suas com esse nível de proximidade? Com esse olhar penetrante? Voltando àquela perguntinha “Se uma delas fosse um menino vocês veriam como amizade?” Ok, KyoAni, você deixou mais que claro que está fazendo um jogo com a gente. Poderiam então se perguntar o que torna isso um queerbaiting e não um desenvolvimento romântico normal, e aí entram outros elementos não citados até agora. Reina confessa que gosta do professor Taki-sensei, e o amigo de infância de Kumiko, Tsukamoto, demonstra interesse romântico por essa.
Eu realmente não possuo muito conhecimento sobre o material original, mas levando em consideração o fato de que na Light Novel as personagens aparentemente têm um desenvolvimento heterossexual, temos quase certeza de que as interações entre Kumiko e Reina foram apenas baiting e é realmente frustrante. Kumiko, no anime, não demonstra interesse romântico por Tsukamoto, e o fato de ele se interessar por ela não significa que Kumiko deva alguma coisa a ele, não significa que ela deva ficar com ele só por esse fato.
Quanto à Reina, essa pode muito bem estar confundindo a admiração que sente pelo professor com um interesse romântico, que aparenta ser no mínimo uns 10 anos mais velho, e eu não julgaria essa diferença de idade se não estivéssemos tratando de uma adolescente de uns 15 anos.
Depois de todo o desenvolvimento mostrado entre Kumiko e Reina, por que as duas relações citadas seriam caminhos melhores e mais saudáveis do que uma relação romântica entre as duas? Apenas porque ambas são garotas? Porque segundo o discurso conservador o certo é homem e mulher e o estúdio quer chamar atenção das pessoas e atrair o público, mas não quer se comprometer? Seguir a obra original não é uma desculpa para desperdiçar todo o desenvolvimento criado até então, já que aparentemente muitas das cenas entre as duas dessa primeira temporada são diferentes da Light Novel.
O único jeito da KyoAni não ser acusada de queerbaiting nesta obra específica seria se eles decidissem seguir uma rota original na segunda temporada. Aí, caso isso aconteça e eles mantenham as interações entre as duas, investindo no desenvolvimento da relação delas, então teríamos uma obra maravilhosa, tanto no quesito de animação, quanto de construção de personagens e suas relações, e até mesmo de representatividade (embora ainda não consigamos fugir do estereótipo do ensino médio). Seria, de longe, o melhor anime de shoujo-ai. No entanto, caso decidam jogar fora todo o trabalho que fizeram na primeira temporada e se prendam ao enredo original, estarão definitivamente assinando o certificado de queerbaiting.
Tamako Market
Episódios: 12 + 1 filme
Sinopse (anilist, adaptado): Tamako sabe quase tudo o que há para saber sobre mochi, os tradicionais doces japoneses. Quando ela não está participando de seu primeiro ano do ensino médio, ela ainda inventa novos sabores e variedades para a Tama-ya, a loja de mochi de sua família. Escola e crescer, por outro lado, são algumas coisas que ela ainda está tentando encontrar a receita certa. Mas com a ajuda de suas melhores amigas Kanna e Midori, Tamako está determinada a fazer o melhor das coisas. É complicado, porém, especialmente quando se trata de emoções e seu relacionamento com seu melhor amigo Mochizou, cuja família tem uma loja de mochi rival. E ultimamente, Midori está se sentindo um pouco estranha sobre seus sentimentos em relação à Tamako também. E o que é aquele estranho pássaro que que fala fluentemente japonês?
Fiz questão de ressaltar essa parte da sinopse, falando da personagem Midori, que protagoniza as cenas de queerbaiting de Tamako Market. Além da sinopse, no character profile da Midori no MyAnimeList, diz que ela “sente a necessidade de ‘cuidar’ de Tamako, tanto que sente que pode estar apaixonada por ela”. Quanta suposição, não é mesmo? Enquanto no character profile do Mochizou tem algo bem direto: “Ele é apaixonado por Tamako”.
Obviamente a diferença não fica nisso, o anime deixa bem explícito que Mochizou gosta da Tamako. Na verdade, existe um filme inteiro dedicado a isso. Enquanto Midori… São poucas as atitudes que podem dar a entender que ela possui sentimentos românticos por Tamako, e esse é um típico caso de queerbaiting. O anime oferece interações muito implícitas e essas são grandemente confundidas com apenas amizade pelo público em geral, porém está ali, na sinopse, chamando o público interessado em ver algo maior.
Num primeiro olhar, Midori aparenta ser realmente apenas uma amiga de Tamako, mas é com o passar dos episódios e também das tentativas de confissão de Mochizou para Tamako, que ela demonstra atitudes que possam estar relacionadas a um interesse romântico pela amiga. Um primeiro indício pode ter sido no segundo episódio, com temática do dia dos namorados.
Tamako: Você sempre ganha chocolate das garotas, Midori-chan. E até garotos te dão chocolate também.
(…)
Kanna e Tamako: Você é demais, Midori-chan. É popular com os garotos e garotas.
Kanna: Mesmo assim, ainda é solteira.
Após isso, Midori acaba corando.
(…)
Midori: E você, Tamako? Vai dar chocolates para alguém?
Tamako apenas fica pensativa e não responde.
Essa reação da Tamako pode indicar que até então ela não havia pensado em ninguém com um interesse romântico. Mas e a reação da Midori?
É óbvio que apenas por isso não dá pra dizer nada sobre a sexualidade, ou até mesmo os interesses românticos de Midori, mas no mesmo episódio, quando as meninas estão tentado gravar um comercial, o avô de Midori aparece para mostrar as decorações de sua loja e diz “Todo mundo ama alguém”. Midori, então, fica pensativa, observando a Tamako e até mesmo o pássaro Dera percebe que tem algo diferente nela (pelo motivo errado, mas ainda assim…).
Os possíveis sentimentos de Midori são novamente abordados no episódio 5, em que ela acredita que Mochizou iria se confessar para Tamako. O menino havia escrito uma carta para Dera entregar para Tamako, mesmo sendo apenas um pedido para que ela se encontre com ele, Midori, ao descobrir, demonstra aspectos de ciúmes. “Acho que você está perturbando a Tamako. A Tamako não te vê dessa forma. Você não chegará a lugar algum mesmo se confessar o que sente! Enfim, a Tamako é minha amiga e eu vou protegê-la!” e além disso os dois começam uma discussão sobre quem conhece a Tamako melhor.
Mais tarde Midori pergunta à Tamako o que ela acha do Mochizou. “Ele é meu amigo de infância. Um companheiro de loja de mochi.” e depois pergunta sobre ela e a resposta de Tamako a deixa aliviada. “Eu te amo”.
Sabemos que partindo da Tamako essa é uma resposta sobre amizade, mas ela não disse que ama o Mochizou, então partindo disso, Midori muda um pouco seu comportamento e incentiva o garoto.
No anime o Mochizou não consegue uma oportunidade de dizer realmente seus sentimentos pela Tamako, mas aí no filme…
Tamako, após isso, começa a pensar no assunto, sem contar que ele também havia dito que iria estudar em Tóquio. Midori percebe que Tamako está diferente e as duas acabam conversando sobre o assunto, mas no momento Midori apenas fica surpresa pela confissão do garoto e diz que também não sabe o Tamako deveria fazer.
Em um momento Midori conversa com Mochizou e diz “Eu realmente achei que você não diria, tenho uma opinião melhor de você”. Essa atitude e a seguinte, em que Midori diz para Tamako que Mochizou está se transferindo, para que a garota finalmente tome uma atitude e vá atrás dele. Pois em meio a esse tempo Tamako disse que diria uma resposta a ele, mas ainda não havia conseguido.
Nessas cenas é bem nítido que Midori não está realmente feliz, ela meio que se força a mostrar que está tudo bem. No geral a impressão que dá é que ela pensa que Mochizou teve a coragem que ela não teve, então Tamako começou a perceber seus sentimentos por ele também, como ela quer ver a pessoa que gosta feliz, vai ajudá-los.
O grande problema não é o garoto se confessar, ou até mesmo a Tamako ter sentimentos por ele, mas o fato de que não deram em nenhum momento uma oportunidade para Midori dizer o que sente. Apesar de não muito explícito, é possível perceber que ela tem sentimentos pela Tamako, então por que esses sentimentos teriam um valor menor do que os de um garoto? Dizem que a Midori não é correspondida, mas nem teria como nessas circunstâncias, e ainda no começo ela ficou com a visão da pessoa chata que quer estragar o casalzinho.
Esse tipo de abordagem não é nada legal, pois reforça a questão de que o certo é homem e mulher, e se você é uma garota que tem sentimentos por outra é melhor nem falar nada porque não vai ser correspondida de qualquer forma. E se Tamako fosse uma personagem bissexual, por exemplo, será que o sentimento de Midori seria tão facilmente descartado? Se ainda assim fosse, pelo menos teriam colocado os sentimentos de um homem e de uma mulher no mesmo patamar, mas o anime não abre espaço para isso.
Além dos dois exemplos citados acima temos também Chuunibyou demo Koi ga Shitai!, outro do mesmo estúdio, em que há cenas de queerbaiting entre Shinka Nibutani e Sanae Dekomori. Como não vi esse anime não posso falar muito, mas aparentemente a situação é tratada apenas como uma piada, as personagens até se beijam acidentalmente em um OVA, como pode ser visto no vídeo abaixo.
A intenção aqui não é criticar especificamente esse estúdio, mas foram os exemplos conhecidos por mim, não duvido que haja outras obras que se utilizam de queerbaiting para atrair o público.
Essa é uma estratégia que vem sendo utilizada bastante pela mídia, e como pudemos ver, pelos animes também. Não é novidade que o sistema capitalista faz uso dos movimentos sociais para obter mais lucro, no entanto, uma coisa é se comprometer com uma causa e outra é apenas dar indícios, para no final mostrar algo diferente. O que as obras que fazem uso do queerbaiting se tratam, nesse sentido, é exatamente disso: utilizam o movimento LGBT para atrair público com busca por representatividade, mas não se comprometem. Sem contar que aqui também pode entrar o caso da fetichização: não é à toa que os exemplos levantados são relações entre duas mulheres, que no caso poderiam atrair homens interessados apenas pelo fetiche da relação, pouco se importando com a causa realmente (o famoso fanservice).
É preciso colocar isso em pauta porque as relações LGBTs precisam começar a ser vistas de uma maneira normal. Assim como uma relação heterossexual, elas existem e são tão reais quanto. Visibilidade importa e essas relações na mídia não devem ser meros meios de se ganhar dinheiro.
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*Queerbaiting provavelmente não é o termo mais adequado para se utilizar dentro do mundo dos animes porque existe, de fato, no Japão uma estratégia midiática para atrair os fandoms de Yaoi e Yuri (que não são homogênios), embora haja, sim, LGBTs no meio, eles não são a maioria. Muita gente que faz parte desses fandoms está apenas atrás de fanservice. Apesar disso, a estratégia utilizada é exatamente a mesma que a do queerbaiting, ou seja, utiliza as relações entre pessoas do mesmo gênero para atrair o público sem se comprometer com a causa, e gera os mesmos problemas, inclusive prejudicando a representatividade LGBT de qualquer forma. Um anime que é um claro exemplo disso é Free!, que utiliza de baiting para atrair os fãs de yaoi.
Além disso, sabemos que a sociedade japonesa é muito mais conservadora do que a ocidental, e que se já é difícil em obras ocidentais, relações entre pessoas de mesmo gênero serem tratadas com a mesma naturalidade e peso que as heterossexuais, em obras japonesas é de se esperar que a dificuldade seja ainda maior. No entanto, esses pontos não tornam a crítica da postagem nem um pouco menos válida. O termo queerbaiting é apenas uma forma de facilitar o entendimento da estratégia e como ela afeta a comunidade LGBT.
Queerbaiting. Urban Dictionary. Disponível em: <http://www.urbandictionary.com/define.php?term=queer%20baiting> Acesso em: 29 mai. 2016
3 comentários em “Vamos problematizar? | Queerbaiting e suas consequências para a visibilidade LGBT”