Esse texto foi originalmente postado em 16 de julho de 2018
Outro dia eu estava passando pela minha TL no Twitter e surgiu um debate interessante sobre o que seria uma adaptação boa ou ruim. As pessoas costumam dizer que quanto mais fiel o anime for ao mangá, por exemplo, melhor ele será, mas isso é necessariamente verdade? Eu penso que não. Nesta postagem vamos discutir o que caracteriza uma adaptação como bem ou mal feita e, para tal, convidei o Gapso do HGS Anime para oferecer outro ponto de vista além do meu e tornar a discussão mais aprofundada.
A primeira pergunta que temos que fazer é: por que adaptações existem? Na maioria das vezes, elas são feitas como uma forma de impulsionar as vendas do material de origem (isso serve para mangás, light novels, jogos etc). No entanto, elas devem oferecer algo que sua fonte não possui – de repente uma reinterpretação que ainda capture sua essência ou uma expansão do universo da obra – para justificar sua existência, pois se quiséssemos uma cópia perfeita do original, nós simplesmente optaríamos por lê-lo.
Sendo assim, no mundo das adaptações – aqui com foco em obras que se tornam animes, pois pode ocorrer o contrário quando os animes são originais – há vários caminhos que se pode percorrer. Alguns optam por fazer uma cópia do original, inclusive mantendo aspectos problemáticos que poderiam facilmente ser consertados (como é o caso de Banana Fish, que comentarei mais pra frente); outros decidem inovar, o que pode dar certo ou errado. Nesse sentido, vamos trabalhar com exemplos para demonstrar as características de adaptações que funcionaram e outras que… bem, nem tanto.
Banana Fish [Mari]
Sei que ainda é cedo para julgar a adaptação que recém lançou seu segundo episódio, mas tem algo que me chamou a atenção e acho necessário discutir. Banana Fish é um mangá da autoria de Yoshida Akimi cujo lançamento se iniciou na década de 80. Como qualquer obra, Banana Fish está sujeita a perpetuar ideias problemáticas que eram tidas como normais no seu tempo e isso é principalmente verdade quando se diz respeito à homossexualidade.
Banana Fish está sendo adaptado pelo estúdio
MAPPA (Zankyou no Terror, Yuri!!! on Ice) e dirigido por
Utsumi Hiroko (Free!). Diferentemente do material de origem, que se passa em New York de 1985, o anime alterou a linha do tempo, de modo que a história ocorra nos dias atuais.
Em entrevista à Comic Natalie, Utsumi disse o seguinte: “
(…) É normal que as pessoas queiram uma adaptação fiel já que a obra se passa nos anos 80, mas eu quero mostrar o jeito que a animação evoluiu como medium
no que se refere a storytelling
, em vez de fazer um CTRL C + CTRL V em forma de animação. Vou deixar a animação se definir como um medium
de forma geral e essa mudança para o tempo atual torna isso possível. (…)“.
É sabido que nos anos 80 a homossexualidade ainda era tratada como doença; muitos inclusive associavam a homossexualidade à pedofilia. Não é uma surpresa, portanto, que Banana Fish traga essa visão também. A julgar pelas palavras de Utsumi na entrevista, eu esperava, então, que o anime solucionasse ou pelo menos amenizasse esse aspecto problemático da obra – sendo essa uma característica de uma boa adaptação –, mas não foi isso que aconteceu.
No segundo episódio, lançado essa semana, Ash, Eiji e Skip acabam presos por Marvin e companhia. Sabemos desde o início que Marvin é um pedófilo que deseja abusar de Ash. Ash, aproveitando-se dessa brecha, faz um teatro para excitar Marvin e abaixar sua guarda para que assim os três possam fugir. Eiji, que não sabe de nada, fica perdido sem saber o que está acontecendo e Skip tenta explicar a situação pra ele, dizendo que Marvin “é gay”. O Skip só diz isso: o Marvin é gay. A implicação que temos aqui é que Marvin quer abusar de Ash porque ele é gay e não porque é um estuprador e pedófilo nojento. Skip poderia ter usado qualquer uma dessas palavras para descrevê-lo (abusador, estuprador, pedófilo), mas não, ele só diz que o Marvin é gay. Talvez essa questão tenha passado despercebida para muitos, mas o fato é que nessa cena a homossexualidade é associada à pedofilia e o indivíduo homossexual é retratado como um predador sexual.
Falando com pessoas que leram o mangá na íntegra, descobri que há mais de um personagem homossexual que é retratado como o Marvin. Pode não parecer, mas isso é um problemão. Esses dias tinha uma postagem de um site conservador rolando por aí dizendo que os pedófilos queriam fazer parte da comunidade LGBT+ e tinham sua própria bandeira. É óbvio que tudo isso não passa de uma grande mentira cujo objetivo é invalidar a causa LGBT+, mas um monte de pessoas acreditou na postagem.
Banana Fish perpetuar essa associação da homossexualidade à pedofilia me preocupa pelo mesmo motivo: as pessoas vão acreditar. Sabemos que o meio
otaku não é exatamente progressista e ter uma obra perpetuando essa ideia não ajuda em nada. Espero, do fundo do meu coração, que isso seja revertido em episódios futuros.
Hinamatsuri [Gapso]
Como procurei argumentar na minha análise sobre a série, Hinamatsuri faz uma adaptação que proporciona ao anime uma identidade própria como comédia desta mídia. Antes de mais nada, vale dizer, para quem não sabe, que mesmo o mangá tendo aquele tema central das personagens que apareceram com poderes sobrenaturais tentando se adaptar à Terra, a obra foca em vários personagens e mini-arcos sobre as diferentes protagonistas; em geral, seus capítulos têm características episódicas – e não precisou necessariamente que tudo fosse mostrado para se criar alguma narrativa linear que se preze em sua animação.
O anime selecionou o que era necessário e deixou de lado alguns capítulos episódicos nos quais aconteciam uma ou outra situação que não afetavam o rumo da história; a série foi orquestrada em prol de que a animação possuísse sua própria identidade visual como comédia, com determinados eventos e acontecimentos selecionados para a criação de uma narrativa mais agradável, ou mesmo conveniente para a comédia que buscou ser cômica no seu mundo de maluquices, mas também completa em abordar o lado mais humano dos personagens e desenrolar uma trama mais dramática que não estragasse tudo que foi construído.
O mais interessante disso tudo é que, além da série proporcionar um bom uso da própria direção para dar vida para as gags, piadas, cenas de ação e maluquices jamais vistas, o fato do anime ser bom pela sua própria forma de abordar a obra – que convenhamos, não é tão diferente assim do mangá, só não foi uma adaptação 100% fiel –, instigou pelo próprio entretenimento criado, a ideia de que quem gostou tanto fosse procurar o original para ler – e assim, quem sabe, descobrir capítulos não adaptados igualmente interessantes e cômicos. Da mesma forma que o anime de Hinamatsuri tem grande prestígio como execução individual, também foi pregado de uma forma ou outra pelo marketing do material original, sendo experiências divertidas e distintas para ambos os casos no fim das contas. É claro que esse tipo de formato de adaptação é muito específico e funciona mais nessas séries mais “abertas”, em que vários mini-arcos, desenvolvimentos e eventos episódicos tomam conta em vez de uma única linha linear a se seguir. Mas esse é um exemplo de como pode ser funcional.
Fune wo Amu [Gapso]
Seguindo mais ou menos a mesma lógica da adaptação de Hinamatsuri, Fune wo Amu cria sua própria identidade como anime. A série é baseada no livro homônimo de Shiwon Miura, com a produção do estúdio Zexcs, e já tendo em mente que se trata de uma história muito mais adulta, madura e que dificilmente chama atenção do público otaku em geral, a história poderia muito bem ter sido chamada de novela ou série de televisão com atores reais. Qual seria a diferença entre esse anime e alguma dessas mídias, no fim das contas? Sua adaptação, no entanto, é gloriosa por abrir portas para uma livre e espontânea camada de ideias e representações visuais, as quais não se encontraria em uma série real – Fune wo Amu é bem trabalhado para proporcionar o máximo de si como uma mídia animada, e esse papel da adaptação em dar brilho e criatividade visual para a história é que torna sua adaptação tão preciosa; o anime se adequou e se reestruturou para funcionar no plano 2D, não só nas ideias que o roteiro queria passar, mas nas representações, simbologias e metáforas que esse tipo de mídia permite fazer. É isso que a difere das outras citadas e a torna uma boa adaptação em anime.
Evitando fazer uma análise do anime, mas passando pelos pontos citados, são todos esses elementos visuais que diferenciam o anime de sua mídia original, e mesmo de desenhos ocidentais, nos quais temas mais maduros são absolutamente raros de serem encontrados (apesar de essa ser outra discussão). A ideia da comunicação pelo dicionário, no anime, é totalmente expressada pelo oceano de palavras que representam as variações sentimentais e as incertezas do protagonista, e as metáforas visuais enriquecem toda sua execução pelo amplo espaço para interpretações. Este é um claro exemplo de como uma história bem feita pode – e deve – se adequar de todas as formas possíveis para a mídia da animação.

Haikyuu!! [Mari]
Minha paixão por Haikyuu!! não é novidade pra ninguém, mas eu não poderia deixar de citar essa obra como o tipo de adaptação que deu certo. O anime de Haikyuu!! captura perfeitamente a essência do mangá – mesmo que tenha que fazer alguns cortes aqui e ali para conseguir encaixar o material em um número X de episódios – e é bem animado. Tem gente (como eu) que às vezes sente dificuldade em compreender sequências que incluem muita movimentação (que é o caso das partidas) em mangá, então poder vê-las em vídeo propicia uma experiência infinitamente melhor. Além disso, Haikyuu!! conta com uma excelente atuação por parte dos seiyuus – me arrepio até hoje lembrando do discurso do Ukai na terceira temporada, a última cena gravada pelo Tanaka Kazunari antes da sua morte em outubro de 2016 – e uma trilha sonora incrível. Claro, não se esperava menos de Hayashi Yuuki, responsável também pelas trilhas sonoras de Ballroom e Youkoso, Boku no Hero Academia, Death Parade, entre outros.
Todos os aspectos citados acima fazem de Haikyuu!! uma ótima adaptação. O mangá já era bom, mas o anime acrescenta um toque especial à obra, tornando-a mais emocionante, sempre mantendo a essência do material de origem. É, de longe, um dos melhores animes de esporte já produzidos.
Tokyo Ghoul [Mari]
Quem leu minhas impressões finais da temporada de primavera já sabe o quanto eu desprezo o anime de
Tokyo Ghoul. Eu diria que com essa franquia o
Studio Pierrot basicamente apresenta um tutorial de como NÃO fazer uma adaptação. Das três temporadas lançadas, a primeira é a menos pior, mas ainda assim foi extremamente apressada. Eles tentam encaixar capítulos demais em um número limitado de episódios, o que tira a tensão da obra e nem te dá tempo de se importar com os personagens recém introduzidos. Na segunda temporada, eles acrescentam tanto
anime-only material que chega a estragar a obra, pois matam um personagem que nunca morreu no mangá (aliás, eu nem sei como vão fazer para introduzi-lo novamente no segundo
cour de
Tokyo Ghoul:re) e tornam a existência da Touka praticamente nula. Esses problemas persistem em
Tokyo Ghoul:re e não mostram sinais de melhora. Além disso, há a óbvia desconexão entre
TG e
TG:re, pois graças ao material original do anime, a continuação não faz sentido. Todos esses problemas de narrativa ilustram também o que é a animação: inconsistente, uma bagunça. A trilha sonora é provavelmente a única coisa que presta em toda a franquia.
O que podemos concluir com isso?
Boas adaptações podem ser caracterizadas como aquelas que possuem sua própria identidade, porém não perdem de vista o que é essencial do seu material de origem. Elas podem até seguir rotas diferentes, mas a mensagem é a mesma, e as mudanças realizadas no anime não afetam a parte central da história (Fune wo Amu, Hinamatsuri). Más adaptações como, por exemplo, a de Tokyo Ghoul, ferem o material original – simplesmente não funcionam. Alguém que começou a ler o mangá e decidiu continuar pelo anime não vai entender direito o que está acontecendo da mesma forma que alguém que começou a assistir o anime e resolveu seguir a história no mangá também vai ficar perdido. Não ser 100% fiel ao material de origem não é ruim, mas também não se pode desvirtuar a narrativa a ponto de tornar impossível o diálogo entre a adaptação e o material original.
Por fim, gostaria de agradecer ao Gapso pela colaboração e perguntar a vocês, leitores, o que pensam sobre esse tema. Concordam? Discordam? Argumentem! Quanto mais gente participando, mais rico o debate se torna.
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3 comentários em “Debate | O que torna uma adaptação boa ou ruim?”