Tradução | O teto de aço japonês (e as mulheres que estão começando a rachá-lo)

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Esse texto foi originalmente publicado em 9 de outubro de 2016 [Artigo originalmente publicado por Tobias Harris na Foreign Affairs]

A eleição de Renho Murata como líder do Partido Democrata (PD), o maior partido de oposição do Japão, em meados de setembro, amplificou a especulação de que o Japão poderá em breve eleger pela primeira vez uma mulher como Primeira Ministra. Renho, como é conhecida, alcançou a liderança do PD algumas semanas após a promoção de Tomomi Inada, membro do Poder Legislativo¹ do atual e dominante Partido Democrata Liberal (PDL), para Ministra de Defesa, e alguns meses depois da vitória de Yuriko Koike, outra mulher e membro do PDL, em uma eleição que fez dela a primeira mulher a governar Tóquio. Juntas, essas vitórias de alto escalão representam os maiores e mais notáveis sucessos políticos já alcançados pelas mulheres japonesas nos anos mais recentes. O fato de eles terem ocorrido quase que simultaneamente indicou para diversos observadores que o teto político de vidro japonês poderá ser estraçalhado em breve. No entanto, sérios obstáculos para o avanço dessas três mulheres permanecem no caminho.
“O Japão pode estar iniciando um ciclo virtuoso através do qual a ascensão de mulheres na política ajudará a legitimar os avanços das mulheres de forma mais ampla.”

A ascensão de Inada, Koike e Renho surgiu em meio a uma mudança mais ampla de atitudes da população sobre o papel das mulheres na sociedade japonesa. As normas tradicionais de gênero tiveram mais poder para permanecer no Japão do que em muitos outros países desenvolvidos industrialmente, o que, entre outros efeitos, por muito tempo, limitou as oportunidades profissionais para as mulheres japonesas. Recentemente, em 1992, uma pesquisa governamental descobriu que 60% dos japoneses concordavam que “os maridos devem trabalhar fora [e] as mulheres devem cuidar da casa”. Na versão mais recente dessa pesquisa, conduzida em 2014, 45% dos japoneses concordaram – uma parcela significativa, mas uma minoria. Ao longo dos anos, a mesma pesquisa tem mostrado o aumento da aprovação pública quanto às mães que trabalham fora de casa: de 23% em 1992 a 45% em 2014. No todo, a sociedade japonesa está mais comprometida com relação à igualdade de gêneros do que esteve no passado. A Pesquisa de Valores Mundiais de 2010-2014, um estudo internacional sobre atitudes culturais realizado há muitos anos, descobriu que 49% dos japoneses participantes concordavam com a afirmação de que “ter um emprego é a melhor forma para uma mulher se tornar uma pessoa independente” – praticamente a mesma proporção encontrada nos Estados Unidos.

Nas décadas mais recentes, também houve um aumento significativo da taxa de participação das mulheres como força de trabalho, de mais ou menos 56% em 1989 para mais de 66% em 2015 – um nível próximo do que há nos Estados Unidos, embora ainda esteja bastante atrás da taxa de participação dos homens japoneses como força de trabalho, que é cerca de 85%. O Primeiro Ministro Shinzo Abe procurou acelerar esse processo através de uma série de políticas conhecidas como “Womenomics” (junção das palavras “mulheres” e “economia”, em inglês), as quais têm como objetivo aumentar o status das mulheres na força de trabalho e encorajá-las para que assumam papéis de liderança. Nesse sentido, em agosto de 2015, o Legislativo aprovou uma lei que requer que as autoridades locais e nacionais e empresas com mais de 300 empregados reúnam dados sobre gênero e empregabilidade e façam um esboço sobre como eles planejam melhorar as condições de trabalho para as mulheres.

Entretanto, também vale lembrar que o Womenomics, para além de suas metas progressistas, é um programa econômico criado com o objetivo de compensar os efeitos do declínio da população japonesa com idade para trabalhar, trazendo mais mulheres para o ambiente de trabalho. E, embora o governo de Abe tenha ajudado a avançar a discussão sobre o papel das mulheres na vida pública, ele também se beneficiou da mudança ocorrida por décadas quanto às crenças relacionadas ao papel das mulheres fora de casa, o qual deve ser atribuído tanto à ampla erosão de valores tradicionais seguindo a modernização econômica por todo o mundo desenvolvido, quanto à maior abertura e sensibilidade da sociedade japonesa com relação às normas globais. As atitudes populares mudaram no Japão, mas as mulheres do país ainda enfrentam barreiras enormes. Em 2015, o Japão ficou em 101º lugar no índice de igualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial, muito atrás de seus companheiros no G-7. A Itália, o mais próximo ao Japão dentre qualquer outro país daquele grupo, ficou em 41º lugar.
A Ministra de Defesa japonesa Tomomi Inada examina uma guarda de honra em Tóquio, agosto.

Números difíceis

Inada, Koike e Renho não estão chegando a campo inteiramente novo. Um número de mulheres ocupou postos de gabinete importantes desde os anos 60, e Koike serviu como Ministra de Defesa em 2007, durante o primeiro governo de Abe. Koike também não é a primeira mulher a vencer um posto para governar, embora ela seja a primeira a vencer em Tóquio, a província mais populosa do país. Renho segue os passos de Takako Doi, que em 1986 se tornou a primeira mulher a chefiar a oposição no Partido Socialista. Nesse sentido, a nova classe japonesa de mulheres como líderes reflete menos uma mudança sem precedentes do que uma normalização gradual de mulheres, incluindo mães, assumindo papéis públicos importantes. As mulheres ainda enfrentam obstáculos massivos na sociedade japonesa, especialmente no setor privado, onde longas horas de trabalho, políticas de licenças de maternidade e família desiguais e escassez de disponibilidade de creches são a regra. Ainda assim, a ideia de mulheres desejarem permanecer como força de trabalho e competir por posições de alto nível depois do casamento não é mais algo controverso. Ademais, como as vitórias convenientes de Koike e Renho sobre rivais homens demonstram, os eleitores estão cada vez mais dispostos a apoiar mulheres como líderes. Uma pesquisa de opinião, realizada em 2013 na Universidade de Tohoku, apontou que 56% dos japoneses não se importavam se a próxima pessoa a ocupar o cargo de primeiro ministro seria um homem ou uma mulher. Outros 36% disseram que uma mulher deveria ser nomeada primeira ministra; apenas 5% se opuseram à ideia.

Apesar disso, por vários motivos, pode ser que leve anos até que o Japão veja sua primeira mulher no cargo de Primeira Ministra. Dos 717 parlamentares que fazem parte do Legislativo na câmara alta² e na câmara baixa³, 78 são mulheres. Apenas um número pequeno dessas 78 serviu por tempo suficiente para competir por um governo e outros postos importantes: no sistema parlamentar do Japão, a alocação de postos importantes tende a envolver considerações de quem é mais velho e está há mais tempo trabalhando. O PDL, por exemplo, geralmente requer que membros do parlamento vençam pelo menos cinco eleições para que sejam indicados a postos de gabinete. (Nesse aspecto, a indicação de Inada para Ministra de Defesa foi uma anomalia: ela tinha vencido apenas quatro eleições). As exigências do Partido Democrata são menos rigorosas, mas lá, assim como em todos os partidos japoneses, os políticos têm que investir tempo até que possam competir por posições de liderança. Nesse momento, essas regras dão uma desvantagem desproporcional para mulheres parlamentares. A expectativa de que legisladores esperem sua vez para assumir cargos de importância é frustrante para muitos políticos ambiciosos; a política japonesa é um ambiente dominado por homens, e o rancor que alguns desses homens guardam com relação às suas colegas mulheres que conseguem postos importantes pode ser assustador. Quando Abe indicou o recorde de cinco mulheres para seu gabinete em 2014, por exemplo, a imprensa japonesa estava cheia de relatos de resmungos de políticos homens anônimos do PDL que reclamavam da discriminação reversa.
Considerando o pequeno número de mulheres que conseguiram alcançar posições de importância, não é surpreendente que, de acordo com uma pesquisa de 2013 da Universidade de Tohoku, dois terços dos japoneses acreditavam que não havia nenhuma mulher na política que teria sido uma escolha aceitável para primeira ministra. A principal candidata entre os participantes foi Koike, nomeada por 9% como uma escolha adequada, seguida de Renho e a parlamentar Yuko Obuchi do PDL, a qual ocupou brevemente o papel crucial de ministra da economia, indústria e negociações em 2014 antes de renunciar em meio a um escândalo de corrupção.
A líder Renho do Partido Democrata com legisladores do partido em Tóquio, setembro de 2016.

Para o topo? 

Ao deixar o Legislativo para concorrer pelo governo de Tóquio, Koike ergueu seu perfil no cenário nacional. O governante daquela província é o que possui a maior visibilidade no Japão, e isso será especialmente verdadeiro para Koike, porque Tóquio sediará as Olimpíadas de 2020. Se ela der conta de limitar o excesso de custos às vésperas dos jogos e tiver por outro lado um governo de sucesso, ela poderá estar em posição para competir pela liderança do PDL e pela candidatura à Primeira Ministra quando deixar o governo. Mas se ela continuar exercendo essa função até 2020, terá pelo menos 68 anos quando estiver livre para retornar à política nacional – próxima do limite máximo para ser uma candidata viável à posição de Primeira Ministra. Além disso, há também a questão da reputação: mesmo antes de Koike desafiar seu partido para concorrer à eleição, ela era considerada uma oportunista que havia pulado de partido em partido até chegar ao PDL em 2002. É possível que um sucesso restrito ao governo de Tóquio torne dificultoso para que os depreciadores de Koike a impeçam de reentrar no cenário político nacional ou ajudá-la a lançar um novo partido baseado em crenças pessoais. No entanto, ela enfrentará oposição interna no PDL, não importa o que aconteça.

O caminho de Inada ao poder poderia similarmente fundar uma oposição de seus rivais no PDL. Mas enquanto a fraqueza de Koike é o fato de ela ser vista como independente demais, o desafio de Inada é que ela aparenta estar amarrada demais a Abe. Recrutada pessoalmente por Abe para concorrer como candidata do PDL em 2005, Inada foi promovida para papéis cada vez mais importantes desde que Abe retornou ao poder em 2012: em dezembro daquele ano, ela ocupou um posto de gabinete de menor importância como ministra de reformas regulatórias e mais tarde ocupou um posto importante no partido como chefe de políticas do PDL antes de se tornar a Ministra de Defesa. Abe quer ter um sucessor quando seu mandato terminar – por enquanto, em setembro de 2018, embora tenham ocorrido discussões internas no PDL sobre mudar as regras do partido para permitir que ele concorra a um terceiro mandato. Inada é uma das candidatas para substituí-lo. Sua filiação à facção Seiwa Seisaku Kenkyukai de Abe, o grupo mais militante e a favor da revisão da constituição, o qual é o maior do PDL e produziu cinco dos últimos sete líderes do partido, pode dar a ela uma chance. Mas mesmo que Abe decida apoiar Inada, não há garantia nenhuma de que o PDL abraçará essa escolha. Inada é uma membro relativamente nova do parlamento; seu nacionalismo e revisionismo histórico com relação às ações do Japão durante a Segunda Guerra Mundial estão fora da opinião japonesa popular; e outras facções do PDL podem se colocar contra o longo domínio da panela de Abe. No mínimo, o caminho de Inada ao poder seria contestado.
Renho, ao se tornar a líder do Partido Democrata, já superou o principal obstáculo enfrentado tanto por Inada quanto Koike. Por outro lado, o PD tem lutado para reganhar a confiança dos eleitores desde que deixou o governo em 2012 e é incerto se o partido um dia será capaz de competir pelo poder novamente. (Em um número de pesquisas de opinião recentes, o partido só recebeu votos favoráveis de apenas cerca de 10% dos participantes). Renho, portanto, encara uma batalha difícil: ela precisa disciplinar um partido dividido, fortificar sua habilidade de recrutar candidatos e desafiar uma administração liderada por um partido que é muito mais popular do que o dela. Mesmo que a sorte do PD melhore, pode ser que leve anos até que ele possa ameaçar de forma séria a saída do PDL. Com isso, ficaria difícil para que Renho sobrevivesse tempo o suficiente para liderar o seu partido de volta ao governo.

Portanto, é improvável que uma mulher da nova classe política japonesa de mulheres seja a primeira a vencer um mandato como Primeira Ministra. Entretanto, o fato de elas terem emergido no cenário nacional sugere que os eleitores japoneses estão se acostumando gradualmente à ideia de haver mulheres em posições de liderança. Mais do que isso, ele sugere que o Japão pode estar iniciando um ciclo virtuoso através do qual a ascensão de mulheres na política ajudará a legitimar o avanço das mulheres de forma mais ampla, diminuindo as barreiras enfrentadas por elas na participação da política nos níveis mais altos. Afinal de contas, Koike, Inada e Renho não estão sozinhas. Obuchi tem experiência, é relativamente nova e possui bons contatos; ela poderia se tornar em breve uma candidata forte novamente. Seiko Noda, uma veterana com 23 anos de parlamento serviu como ministra de gabinete e em postos do PDL e foi a única parlamentar que considerou seriamente concorrer contra Abe em sua candidatura à reeleição como líder do PDL em setembro de 2015. Uma das estrelas em ascensão do PD é a Shiori Yamao, de 42 anos, que serviu como a primeira chefe de políticas do partido e é conhecida por ter criticado o primeiro ministro em sua atuação no Womenomics. Conforme o sistema político japonês se afasta gradualmente da velha rede de contatos masculina que determinou historicamente quem entrava na política e ascendia até o topo, mulheres como essas podem começar a forçar a abertura de uma nova porta. Pode ser que seja apenas uma questão de tempo até que alguém quebre o que Koike chamou de “teto de aço japonês”.

¹ O texto original se refere ao Poder Legislativo do Japão como “Diet”, que poderia ser traduzido literalmente como “Dieta Nacional do Japão”, entretanto, para fins de melhor entendimento, optei por traduzir como “Poder Legislativo”.

² O sistema parlamentarista japonês se assemelha um pouco ao brasileiro no sentido de ser bicameral. Enquanto aqui nós temos o Senado e a Câmara dos Deputados, lá eles têm a Câmara dos Conselheiros e

³ a Casa dos Representantes.

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